quinta-feira, 5 de março de 2009

As fantasias

Depois de tantos meses, ainda considero o meu quarto o único refúgio totalmente seguro. Se é que isso é possível. Quando a mente não está totalmente a seu favor, não há um local no mundo que seja de absoluta paz e tranquilidade. De qualquer forma, o meu quarto continua sendo o meu mais valioso espaço.
A tarde de ontem foi extremamente quente e abafada. Senti-me sonolenta e pesada, conseqüência da gravidez, acredito. Embora sempre tenha sido sonolenta aos dias e desperta às noites... Enfim, ontem só conseguia pensar na minha cama, no filme da Sessão da Tarde, num pedaço enorme de melancia antes de um copo maravilhoso de Coca-cola e no ventilador, girando bem na minha frente. E como toda e qualquer mulher grávida, cedi aos meus desejos como num passe de mágica!
Uma cena do filme, em especial, chamou-me bem a atenção. Na sala de aula, o professor de literatura discursava sobre fantasia. Claro que uma certa obra de Shakespeare foi citada como o exemplo mais clássico e romântico da situação, mas o que ele queria mesmo abordar era a questão do uso da fantasia para a conquista de algo desejado. Fiquei pensativa o resto do dia e a noite também, mais ainda. Filho, esse momento de espera faz-me refletir todo o tempo sobre a pessoa que eu era, que me tornei e que provavelmente serei em alguns anos, até o fim dos meus dias. A única coisa que tenho feito em todos esses meses é pensar. Desmonto minha natureza e refaço meu raciocínio a todo momento. Nem quando criança brinquei tanto de quebra-cabeça...
Todas as fantasias que já vesti, vieram ao meu encontro como num baile de carnaval único e assutador. Mais parecia festa de Halloween! As músicas, as luzes, as danças, as gargalhadas das máscaras que me assombraram por todos esses anos de tentativa de desintoxicação psicológica. Não posso esquecer-me de algumas fantasias românticas, outras infantis ou até mesmo as mais ingênuas. Essas fizeram alguns momentos da festa, mágicos.
Lembrei das fantasias que usei para encenar nas comemorações da pré-escola. Ou daquelas que encarnei com emoção nas pecas de teatro do Vieira, mesmo essas nunca sendo personagens principais. O concurso de poesias, subi ao palco como uma verdadeira poeta. A minha “grandiosa obra” foi publicada no livro anual do colégio, como prêmio, e fui convidada a recitá-la para um auditório repleto de pais e familiares orgulhosos. Outras fantasias eram submissas e inseguras, quando me calava diante dos colegas por vergonha de ter o meu nome exposto no jornalzinho mensal, ou até mesmo em gincanas ou trabalhos extracurriculares. Uma vez, aos 14 anos, fiz um lindo poema sobre o crepúsculo e pedi a uma amiga que assinasse por mim, para que o texto fosse publicado na escola. Realmente um lindo poema...
As paqueras. Perdi a conta de quantas vezes fui alguém que não reconhecia em mim, só para impressionar garotos imaturos e vazios. Os olhos se enganam. A beleza cega. Ao contrário do que dizem os cientistas, a mente não processa as informações tão rápido quanto o coração sente. E ele normalmente comete equívocos, filho.
Comparando todas elas, a minha fantasia mais perigosa atuava com a compreensão e fácil aceitação de todos os fatos. Tudo era normal, qualquer coisa era perdoável. Só não valia perder a alegria, o sorriso. Afinal, é isso que todos esperam sempre de você. Uma pessoa madura, segura, feliz, realizada e moderna. Cada mágoa, cada traição, as revoltas por sentir-me enganada, nada disso era justificativa forte o suficiente para um desequilíbrio emocional momentâneo. Lá eu estava, sempre desempenhando esse papel ridículo e medíocre, a mulher mais compreensível e doce do mundo. Chorando por dentro, mas sorrindo por fora. Coração sangrando e comportamento digno de realeza. E eu estava completamente errada! Muitas pessoas se aproveitaram dessa fantasia perfeita. Eu me aproveitei também da minha própria máscara e só encontrei a dor e decepção mais na frente. A vida se encarregou pessoalmente de me desmascarar por cada vez que tentei me esconder dela, por trás de um falso e forçado sorriso. Desmoronei, sim. Achei por um momento que nunca mais fosse levantar. E algum tempo depois, lá eu estava novamente com uma fantasia inédita, porém versão mais atualizada dos meus tempos de idiotice completa. Alienação, pode-se afirmar. Até hoje me questiono os motivos que me levaram a tantos disfarces. Nada alcancei, apenas me machuquei. Tudo que consegui foi ouvir, em diferentes textos, que sou a pessoa mais pura e doce que já conheceram, e que por isso não merecia ser mais magoada. Minhas fantasias sempre foram dignas demais, e por isso sempre receberam a “sinceridade” alheia em troca. Ninguém se sentiu suficientemente elevado ao meu nível, depois de tanto terem mentido e forjado alguma característica nobre. Todos souberam aproveitar a novidade do “ser bom e honesto” em mim para depois se julgarem indignos da minha preciosa companhia. Ninguém perguntou às minhas fantasias o que eu queria, o que eu achava e desejava. Ou o que não desejava. Os meus compreensivos sorrisos subtendiam maturidade excessiva.
Processo vicioso, impossível de ser desfeito depois que se passa a ser parte integrante dele. Hoje visto a fantasia de mãe. Procurei esquecer a pessoa e mulher que habitavam em mim. Eu já me dividi em três e agora me vejo em apenas uma. Há seis meses, a fantasia do compreensivo sorriso engoliu os meus anseios e resumiu a minha existência através de uma fantasia maternal incompleta. Venho tentando consertar mais este erro durante todo esse tempo. Complicado, confesso. Extremamente doloroso e complicado, porém necessário.
As fantasias nos dão coragem para realizar algo considerado inadequado por nossas próprias leis pessoais. Uma máscara facilmente posta pode tornar-se difícil de ser retirada. Às vezes, fingir ser uma outra pessoa parece a atitude mais simples e coerente, mas na verdade é a opção mais perigosa, o caminho mais tortuoso.
A minha cama, definitivamente, estava especialmente deliciosa ontem. Desconfio de que ela vestiu o disfarce de esconderijo e me fez sentir a mulher mais protegida, no mais absoluto conforto. Adormeci, e esta manhã percebi que algumas das minhas fantasias já estavam aposentadas, penduradas nos cabides do armário do tempo.

Um comentário:

  1. Lôra,
    fazia dias q eu não lia seus posts e, me dei conta essa semana, q seu bebezinho está a chegar ou até q já estivesse "por aqui". Seu blog é muito corajoso, viu. Eu acabei de ler o mês de janeiro e fevereiro todo. Parece uma novela q eu fico ansiosa para ver os próximos capítulos. Ô, Lú,não fica triste com o que as pessoas falam de vez em quando, ou sempre. Não deixe que elas roubem o seu momento. Pelo contrário, sinta-se forte pelas suas escolhas. As dificuldades estão presentes na vida de todos. Na sua, na minha, das pessoas que te julgam...ao moodo de cada um.
    Imagino que vc esteja ansiosa com a chegada do Anachin. Desejo tudo de bom a vcs 2 e aos seus familiares quando chegare a hora. Tranquilidade...
    Beijos,
    Naiara.

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