terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Um mundo nada subversivo

O alarme despertou às cinco e meia da manhã. Nós tínhamos um exame importante para fazer hoje, filho. Na verdade, quatro. As minhas idas a Salvador se resumiram a médicos e testes rotineiros, nada mais...
Após o laboratório fui a uma delicatessen para um rápido desjejum e, de repente, vi da janela uma confusão na esquina. Uma mulher caída, toda de branco, com um bolo de dinheiro na mão. Duas pessoas correram para socorrê-la, uma guardou o dinheiro para que ela não fosse roubada, a outra a virou de barriga para cima na tentativa de reanimá-la. Em menos de dois minutos e a rua estava tomada de gente curiosa, uns oferecendo ajuda, outros apenas queriam assistir a tragédia e provavelmente esperavam por uma notícia fatal.
Adoramos o fatalismo, essa condição humana viciada em terror e dramas. Qualquer fato triste nos prende mais a atenção, estimula nossa curiosidade e, numa visão até positiva, nos faz assimilar melhor a realidade.
Continuei a beber o suco de laranja e uma viatura já tinha chegado, fechado a esquina e afastado algumas pessoas. Após uns quinze minutos levantei-me e fui embora. Encontrei com seu avô no banco e passamos por lá de carro novamente uns vinte minutos depois, a mulher ainda estava deitada sem nenhum sinal de consciência...
Nunca saberei se ela sobreviveu...
Estou tomada de tristeza hoje, filho. Não por causa daquela cena, admito. Mas porque percebo a cada dia mais o quanto somos frágeis. Para morrer realmente basta estar vivo! Hoje eu era espectador, amanhã poderei ser a personagem principal. E a vida continua...
Nunca saberemos quando será nosso último dia. É preciso correr contra o tempo. Correr, não! Voar! Ultrapassar a velocidade do som, da luz, da vida! Não deixar nada para o dia seguinte, pensar antes de agir. Não pensar também é uma alternativa inteligente e mais prática! Optar por ser generoso ou egoísta, bom ou ruim. Ser consciente ou delinqüente, explorar o Id do seu cérebro ou aperfeiçoar cada vez mais o Superego.
Eu já escolhi algumas vezes, filho. Já fui transviada, desapegada, descrente dos laços e obrigações espirituais que me motivaram a voltar para este mundo nada subversivo. Acertei de menos e hoje tenho que conviver com os meus erros. Não acompanhei as leis naturais. Fui feliz, sim! Mas também me desgastei em muito pouco tempo... Relutei, preguei novas idéias e fui condenada. Senti-me como as bruxas da Santa Inquisição, réu sem qualquer motivo forte! E daí veio a revolta muda na minha cabeça. Os meus pensamentos se voltaram para uma revolução, uma guerra eterna entre os padrões e meus desejos. Não aceitei o discurso do meu professor da universidade sobre sermos todos iguais, instrumentos da mesma pós-modernidade, vítimas dos mesmos meios e ideais de consumo. Estava enganada! Ele já tinha vivido muito mais do que eu e sabia o que estava dizendo. Provavelmente não porque se especializou em metodologia científica e comportamento social, mas porque algum dia já foi como eu, um revolucionário falido. A bandeira é forte, mas a muralha que envolve essa realidade construiu alicerces muito mais resistentes...
Há algum tempo, para uma mulher na minha situação, o mundo seria impossível! Um esconderijo na floresta mais fechada seria a única solução. Hoje é tolerável, mas não menos condenável quando me viro de costas. Foi difícil voltar ao Brasil. Foi terrível encarar os olhares de decepção e, de alguns, até o desprezo. Foi triste perceber em algumas pessoas próximas a satisfação pela minha “derrota”. Afinal, voltei sozinha, grávida e sem estrutura financeira suficiente. Se não fossem os meus pais...
Engoli, calada, comentários do tipo: “os filhos de Jorge realmente não deram para nada! E agora? O que será dessa menina? E o pai dessa criança?”
Uma amiga da minha mãe foi capaz de me dizer que nunca imaginou que isso aconteceria com uma pessoa como eu, que sempre pousei de firme e independente. Inclusive me usou como exemplo para os filhos, para que nenhum deles repetisse o meu mesmo erro. Ninguém pode imaginar o que sofri quieta, no meu quarto. Quantas noites em claro, chorando, caindo em desespero e vergonha. E isso ainda acontece, filho. Confesso!
Já desejei muito estar numa situação semelhante à daquela mulher, caída, desmaiada e inconsciente. Quantas vezes idealizei uma morte repentina e tranquila, num cenário calmo, na minha cama... Perdoe-me, Anachin. Mas a euforia em ter-te dá espaço para o desânimo, às vezes...
Mas logo me lembro do seu perfeito rostinho, em todos os sonhos que já nos encontramos, e a decepção por causa dessa mentalidade humana e primitiva evapora! Que se explodam os pessimistas! O inferno tem espaço vazio suficiente para pessoas tristes e terríveis! Como essas que se lambuzaram com o meu sofrimento, com fofocas e comentários maldosos. Como aquelas pessoas que assitiram o episódio de hoje apenas para alimentar seus olhos famintos de desgraça alheia e continuarem suas vidas medíocres. A realidade machuca, Anachin. Não posso te esconder que você está chegando num mundo onde existe uma batalha travada entre zumbis sanguinários e anjos do apocalipse.
O alarme despertou às cinco e meia da manhã. Nós tínhamos um exame importante para fazer hoje, filho. Na verdade, quatro. Mas um pesadelo me pareceu tão real que preferi não levantar da cama...

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